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Celso Lungaretti e a utopia dos anos 60

Neste impressionante depoimento, nosso colega relembra parte da sua história na ECA, que se confunde com aquele conturbado período na vida dos brasileiros. “Em 1970, aos 19 anos, tornei-me um militante estigmatizado por ter dado depoimento à TV exortando os jovens a não ingressarem numa guerra que eu sabia estar perdida. Evidentemente, poucos sabiam que isto aconteceu após ter permanecido 75 dias incomunicável, sujeito a ser torturado a qualquer momento; poucos dias depois de um tímpano estourado na PE da Vila Militar; e sob ameaça de ser torturado até a morte caso não levasse até o fim a farsa orquestrada pelos serviços de Guerra Psicológica das Forças Armadas.

“Passei depois um ano preso e, ao sair, tive de juntar os cacos da minha mente, sem apoio de psicanálise, nada disso, porque meus pobres pais não poderiam bancar tais luxos. Estudei durante um semestre no Equipe Vestibulares e entrei logo na ECA.

Abaixo-assinado na sala de aula

“Por meio do colega Douglas Salgado, fiquei sabendo que chegaram ao cúmulo de discutir no centro acadêmico como me deveriam receber. Ele foi o único colega que teve a dignidade de vir me perguntar o que realmente eu era. Mas, outros deveriam ter percebido quando, indignado porque uma veterana professora de História da Arte, Francesca Cavalli, ousou trancar a porta para impedir o ingresso dos alunos que chegavam atrasados, quando ela foi aberta, ao final da segunda aula, dirigi-me aos colegas dizendo que, se deixavam uma professora fazer algo assim, deveriam estar todos mortos.

“Isto mexeu com os brios da classe, que resolveu entregar um abaixo-assinado ao diretor pedindo a substituição da professora por estar desatualizada em todos os sentidos (passara, se não me engano, duas décadas afastada da ECA). Augusto Nunes, que presidia o centro acadêmico, prometeu imprimir e distribuir para a ECA inteira o abaixo-assinado. E, quando os colegas me pediram que fosse eu a redigi-lo, aceitei, noblesse oblige, embora soubesse que deveriam existir espiões aos montes por lá.

“Depois, Augusto veio dizer que submetera nossa carta ao diretor ANTES DE IMPRIMI-LA E E DISTRIBUÍ-LA, conforme prometera; que o diretor transferira a decisão à chefia do departamento, OCUPADA INTERINAMENTE PELA PRÓPRIA FRANCESCA, que, obviamente, jamais decidiria pelo próprio afastamento; o diretor também teria alertado que, se o abaixo-assinado circulasse, os responsáveis poderiam ser expulsos com base no decreto-lei 477.

“Os primeiranistas, como seria de esperar, recuaram. E eu saí sem uma palavra, batendo a porta. A partir de então, fiz o mesmo sempre que o Augusto vinha anunciar na classe o início de qualquer outra luta que também abandonaria pela metade.

A volta à USP, seis anos depois

“Deixei a ECA no final daquele semestre, porque precisei trabalhar em tempo integral para pagar o aluguel da comunidade alternativa na qual estava morando com velhos e novos amigos. Só voltei em 1978, depois de prestar novo vestibular (não trancara a matrícula), porque precisava do diploma para continuar trabalhando como jornalista nas agências de assessoria de imprensa.

“Essa segunda fase teve episódios mais interessantes, como um raro caso de censura dentro da própria ECA: o vídeo que fizera na cadeira de Linguística, inspirado numa canção sobre exilados do Vandré, foi proibido à última hora pelo diretor de ir ao ar no sábado em que se apresentavam ao público externo os melhores trabalhos. Alegação: “problemas técnicos”, embora estivesse no padrão habitual dos vídeos da mostra.

“O responsável pelo estúdio disse que acataria a proibição no que tange a enviar o vídeo para ser visto na sala de aula, mas o exibiria para quem o quisesse assistir no próprio estúdio, sentado no chão. Todo mundo quis ver, por causa da própria censura. Lotou. Causou uma polêmica no mural.

“E houve também um episódio hilário. Numa eleição para o centro acadêmico, a gestão arrogante da Libelu indignou muita gente, inclusive eu. Os insatisfeitos fizeram uma reunião para estruturar uma chapa concorrente. Fui e falei sobre uma velha proposta de 1968, a da “universidade crítica”. Mas, acabei não me engajando na chapa nem escrevendo nada programático sobre isso. Os intelectuais da Libelu, no entanto, foram pesquisar a proposta de 1968 e lançaram um enorme documento de refutação… a algo que os adversários, afinal, não estavam pregando! E perderam a eleição.

Amargura: o sonho de 68 acabou

“Só no século atual, a realidade sobre meus dramas de 1970 ficaria mais conhecida, graças a um depoimento do Jacob Gorender e a meu livro “Náufrago da Utopia”. Se alguém se deu ao trabalho de refletir sobre isso tudo, deve ter compreendido que tanto em 1972 quanto em 1978/81 eu estava é profundamente amargurado com o fim do sonho de 1968 e não ligando para nada que ainda me pudesse acontecer, daí algumas atitudes intempestivas que tomei, mesmo sabendo que era vigiado (no prédio em que morei depois da comunidade, o síndico me alertou que eram frequentes as visitas de agentes perguntando se eu realmente continuava morando lá e se recebia visitas estranhas).

“E não posso deixar de considerar uma retaliação o processo totalmente estapafúrdio, de cunho censório, que sofri como redator de uma revista masculina, por conta de um conto que não era meu e de um anúncio publicitário que também não redigi. Era tão insustentável a acusação que não me pareceu nenhuma coincidência o fato de que o arrastaram até o fim, fazendo-me passar tardes inteiras no Fórum João Mendes para, só no julgamento, o promotor reconhecer o óbvio e recomendar minha absolvição.

“Já em meados dos ’70 me ofereceram a opção de ser “reabilitado” pela esquerda, desde que desse uma entrevista contando tudo que acontecera comigo nos porões da ditadura e omitisse que havia sido injustiçado pela própria organização a que pertencia, ao me fazerem de bode expiatório de algo pelo qual não era eu o responsável (a queda da área de treinamento em Registro). Minha resposta foi que, ou eu contaria a história por inteiro ou deixaria para mais tarde, quando pudesse fazê-lo. Com isto, passei mais três décadas sem condições de desenvolver plenamente a atuação política que eu pretendia.

“Vivemos hoje uma época de polarização, no pior sentido. Então, personagens incômodos tanto para a direita quanto para a esquerda dominante têm enorme dificuldade para serem ouvidos e poderem apresentar suas versões. São condenados inapelavelmente e acabam desistindo de resistir.

“É o que eu quero deixar como legado para as novas gerações e os pósteros: nem sempre tudo é o que parece e, por pior que sejam as circunstâncias, devemos sempre honrar a nossa verdade. Às vezes ela acaba vindo à tona, como felizmente ocorreu no meu caso. Às vezes se morre sem ver tal dia. Mas, a opção revolucionária implica também não se curvar quando tudo parece estar contra. Só encontra a saída do labirinto quem não desiste de a procurar”.

Para quem quiser conhecer melhor a história de Celso, sugerimos este link: https://bit.ly/3LpmKpw

Na foto, Celso e Douglas


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