Dois dias tristes na vida de Orlando
- ecaturma72
- 9 de out. de 2022
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Quase que sem querer, nosso colega Orlando Barrozo viveu momentos de tensão em 1975, ano em que os estudantes da ECA organizaram a primeira greve na USP desde 1968. Recentemente, aquele período voltou tristemente a sua memória, como ele conta neste depoimento:
“No último dia 26 de agosto, em meio às atividades da Comissão Organizadora do nosso Encontro de 50 anos, minha mãe veio a falecer. Foi um desfecho já esperado, visto que sofria de duas doenças graves (câncer e Alzheimer) e, aos 87 anos, vinha bem debilitada há alguns meses.
“Com ela nos últimos momentos de hospital, comecei a recordar episódios de nossa vida em comum, e um dos mais marcantes tem a ver com minha história na ECA.
“Era maio de 1975, e eu havia sofrido em janeiro um acidente de carro que ainda me limitava os movimentos. Morávamos em Santo André e eu precisava dirigir para ir à USP todos os dias; com o acidente, tinha que literalmente fazer ginástica ao volante para percorrer o trajeto de quase 30km.
“Nesse período, a atividade política na ECA começava a ferver, devido a atitudes de um diretor (Manoel Nunes Dias) alinhado com a ditadura militar. Aumentavam as pressões sobre alguns professores, e o Centro Acadêmico Lupe Cotrim realizava eleições para troca de diretoria.
“Eu e outros colegas meio que fomos ‘empurrados’ a participar de uma das chapas concorrentes, que, embora desarticulada, acabou vencendo. Virei diretor do CA quase sem querer…
“Em abril, teve início a primeira greve na USP desde 68. Muitos não devem se lembrar, mas o estopim da greve foi a cassação do prof. Sinval Medina, do departamento de Jornalismo. Como era comum naqueles tempos, não houve maiores explicações para a decisão de Nunes, apoiada de forma constrangedora pela Congregação da ECA.
“Ato contínuo, pediram demissão em solidariedade a Sinval os professores Cremilda Medina (sua esposa), Paulo Roberto Leandro e Walter Sampaio, este então diretor do departamento. No dia seguinte à notícia, os estudantes pararam as aulas.
“Mesmo andando com dificuldade e tendo ainda que cumprir meu expediente como repórter da sucursal paulista de O Globo, fiz questão de participar de todas as assembleias daquele período. Além de não concordar com os rumos que Nunes dava à ECA, bateram forte minha tristeza e solidariedade com os queridos professores, com quem me identifiquei desde a primeira aula e mantive laços de amizade que duram até hoje.
“No dia 5 de maio, uma segunda-feira, não fui à ECA. Havia marcado uma sessão extra de fisioterapia e precisava de repouso. Tentando descansar em casa, com minha mãe no apoio que nunca faltou, eis que ouvimos a campainha. Ao abrir a porta, um susto: havia um camburão em frente ao portão!
“Dele saiu um japonês baixinho pedindo para entregar um documento. Era uma intimação para comparecer, três dias depois, ao DOPS. Sim, aquele mesmo DOPS celebrizado pelo sinistro Delegado Fleury e que todos nós, na USP, tremíamos só de ouvir falar.
“Em tempo: olhando melhor, vimos que não era bem um camburão, mas uma perua Chevrolet C14, escura, com espaçoso porta-malas, que os milicos usavam para levar a passear alguns ‘convidados’. Não era, mas metia medo como camburão…
“Ao ver a intimação, minha mãe começou a chorar. Nada sabia do que estava acontecendo na USP, mas sabia o que era um ‘convite’ daqueles. Meu pai, felizmente, não estava: havia viajado a trabalho e só voltaria no final do mês. O velho talvez infartasse diante do tal japonês.
“No dia 8, saímos de casa, eu e minha mãe, rumo ao trem que nos levaria de Santo André à Estação da Luz, vizinha ao prédio do DOPS. Lembro que foi um trajeto tenso, silencioso. Dolorosamente para mim, era obrigatória a presença de pelo menos um dos pais (ou responsáveis) do perigoso elemento que queriam interrogar.
“Na minha ingenuidade, não imaginava que o fato de convocarem também os pais era uma boa notícia: quando queriam dar fim a uma pessoa, os milicos não se importavam com formalidades. Cansei de ouvir de amigos os relatos sobre apreensões sumárias, com socos, pontapés e ‘telefones’ fazendo as vezes de intimações por escrito. Por supuesto, eu podia me dar por feliz naquela situação.
“No prédio do DOPS, hoje funciona a veneranda Sala São Paulo, considerada a melhor sala de concertos do país. E vale aqui um registro: em 1999, tive o prazer de produzir uma reportagem sobre a inauguração, conhecendo de perto detalhes do espaço. Confesso que não foi sem um friozinho na barriga que entrei ali depois de 24 anos!
“Naquele maio inesquecível, chegar ao edifício que nos causava aquela mistura de medo e asco já foi, em si, uma experiência marcante. Conduzir minha pobre mãe por aqueles corredores, sem saber o que nos aconteceria nos minutos seguintes, me fez tremer as pernas. E a recepção que tivemos, por parte de um delegado cujo nome nunca mais me saiu da memória (Silvio Machado), só posso descrever como humilhante.
“Cometi muitos erros na vida, tive problemas com chefes, sócios, clientes, ex-mulheres, acho que até pratiquei (sem querer) algumas injustiças, mas juro que nunca levei um esporro tão devastador.
"Comunista, irresponsável, safado, filhinho de papai e terrorista são alguns adjetivos que recordo de seus gritos, enquanto olhava para minha mãe e percebia seu sofrimento silencioso ao ver o filho sendo ofendido daquela forma.
“Sim, silêncio absoluto. A pior coisa a fazer naquela circunstância seria esboçar qualquer resposta.
“Sobraram também palavras nada amistosas para a coitada, acusada de não saber criar os filhos – justo ela, que teve seis, sendo eu o primogênito, a quem dera a luz aos 17 anos.
“Tudo aquilo foi para ela uma chocante surpresa: sempre evitei levar para casa os problemas – especialmente os de caráter político – da USP.
“O esporro deve ter durado uns 15, 20 minutos. Quando pensávamos que o ‘doutor’ delegado tinha encerrado, ele chamou um aspone com a ordem expressa: ‘Leva ele’. Peraí, leva pra onde? Foi o que pensei, mas não tive coragem de perguntar. Lembro do olhar de minha mãe, talvez imaginando que aquilo poderia ser uma despedida…
“Não era. Apenas fazia parte do roteiro de intimidação cuidadosamente preparado.
O aspone me conduziu a uma escada que dava para o subsolo do prédio. Entramos num corredor estreito que aos poucos foi ganhando ares de labirinto. Nenhuma janela. Pouca luz. Paredes de um tom cinza desbotado e enfadonho. O percurso deve ter levado uns 30, 40 segundos, mas na minha cabeça (e certamente na de minha mãe) foi uma eternidade.
“Chegamos enfim à ‘sala de música’, onde o meliante aqui deveria ‘tocar piano’, ou seja, deixar suas digitais e tirar fotos de frente e de perfil. Nada demais, fora o constrangimento. Não doeu nada. Só na alma.
“Após a ‘sessão musical’, fui levado de volta à sala do delega, para ouvir o final do lero-lero e sermos dispensados, num clima de ‘na próxima vez você já sabe’. A viagem de volta no trem para Santo André foi de alívio, embora ainda com medo, como de resto vivíamos aquele período de nossas vidas.
“Soube depois que os outros membros da diretoria do CA Lupe Cotrim passaram por experiências semelhantes.
“No último 26 de agosto, esse filme todo me passou pela cabeça enquanto observava a agonia de minha mãe. O ‘alemão’ provavelmente apagou de sua memória o triste episódio.
“Me ficou o flash dela humilhada por aquele gorila da ditadura”.
PS.: como nota adicional de tristeza, apenas recentemente fiquei sabendo da perda de um colega da ECA na época. Edison Miguel, então presidente do CA Lupe Cotrim, com quem vim a trabalhar na TV Cultura e de quem perdi o contato depois disso, suicidou-se com um tiro em 1989. Vivia sérios problemas pessoais. Foi Edison quem me convidou para integrar a diretoria do CA. O que nos aconteceu na ECA foi terrível, mas nem se compara ao drama que ele viveu depois.

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