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Suely Farah e os ensinamentos de Villas-Bôas

Colegas da ECA 72, Eu gostaria que nosso momento não fosse marcado por tantos desastres coletivos, como este que estamos hoje vivendo globalmente. Eu gostaria de poder me esquecer disso tudo em breve tempo, mas acho que minha memória implacável não me permitirá isso, até porque também já estamos em uma idade que não nos permite muito mais amplas e distantes projeções no futuro. Então eu fiquei pensando de que modo poderia contribuir para esse nosso momento de encontro com algo especialmente guardado na minha memória, que é o que tenho de melhor, e que, além de dizer respeito a nós todos, também tivesse o condão de nos inspirar no presente pela atualidade de seu teor. Lembro-me aqui, junto com vocês todos, de um momento do nosso comum original trote cultural naquele ano de 1972, na ECA. Foi uma conversa com Orlando Villas-Bôas. Ele esteve lá conversando conosco e espero que não apenas eu tenha essa lembrança que passo aqui a relatar, mas que também possa ajudar a recordar aos que pensam não se lembrar desse momento, assim como para os que de fato não se lembram de nada disso, porque acho que é oportuno trazer de volta esse momento de nossas vidas, nesse país e nesse mundo em que vivemos agora. Não me lembro de tudo o que ele disse, porque minha memória não é mecânica, mas afetiva e então nela tem junto muito dos meus sentimentos em cada lembrança guardada comigo, o que faz com que elas, as lembranças, sempre me pareçam tão vivas e presentes. Então acho que é isso, colegas, eu não carrego lembranças, eu guardo presenças. Até ali, na verdade, eu nunca tinha ouvido falar dele, mas o reconheci logo como alguém que não me era estranho e foi só mais tarde, quando nem estava mais na ECA, que descobri que ele morava a apenas alguns quarteirões de mim e que eu sempre cruzava o meu caminho com o dele quando saía para andar a pé pelo bairro, coisa que sempre fiz e faço porque gostava e ainda gosto de fazer isso, principalmente nessa época do ano em que ainda podemos ouvir os sabiás cantando por aqui. Acho que era disso que ele também gostava, quando saía a caminhar por esses lados. Hoje ainda moro ao lado da lembrança dele, mesmo já passados muitos anos de sua morte, pois agora a minha casa fica a um quarteirão do Parque Villas-Bôas, que criado e aberto aqui perto, foi depois fechado por ter sido declarado com solo contaminado, e que, mesmo já existindo hoje o laudo que atesta ausência de contaminação, permanece fechado à visitação pública, por incúria e indiferença do serviço público municipal. Bem, mas vamos à memória das duas falas dele que eu guardo aqui comigo e quero hoje repartir com vocês. Na sequência do que ele disse em sua fala inicial, antes de se abrir a perguntas, lembro-me de ter ouvido dele, pela primeira vez, a referência ao que ele chamou ali de “educação para a liberdade sem medo”. Ele disse que já tinha ouvido ele mesmo referência a esse conceito antes, pelo que ouviu ou leu em algum lugar, mas que foi observando o trabalho de uma indígena na aldeia, com o filho pequenino ao lado, que ele de fato compreendeu o que aquilo significava na vida da gente. Ele disse que a mulher moldava cuias de barro e toda vez que punha ao lado para secar aquela que acabara de fazer, o meninozinho engatinhava até ela e a amassava com as mãozinhas. Depois de várias vezes do mesmo acontecido, ele que observava de longe se impacientou com aquilo e perguntou à mulher porque ela não o repreendia por destruir o que ela havia feito. Disse ele que ela o olhou com espanto, parecendo não entender a pergunta. Como ele insistisse em perguntar o que ela não sabia responder, disse então que ela acabou por dizer, com a simplicidade e a clareza das coisas óbvias: - Ora, porque ele quer aprender e eu quero ensinar. Acho que foi ali, naquela sala grande, quase um auditório, no primeiro andar da ECA, naquele remoto ano de 1972, que, mesmo sem saber disso naquela hora, mas entendendo isso agora, ouvir aquilo dele me fez decidir interiormente pela educação popular a que sempre me dediquei depois, na vida, como uma inclinação ou pendor natural que me acompanha em tudo, a qualquer hora e lugar onde sempre enxergo alguma possibilidade de aprendizagem. A segunda coisa que ele disse ali e que me marcou pra sempre foi em resposta a uma pergunta que alguém perto dele lhe fez entre as primeiras fileiras à sua direita, e que eu nunca soube ou não me lembro quem foi. O rapaz perguntou pra ele se “índio tinha depressão”. Depressão era uma palavra nova naquela época, quando a gente, eu acho, ainda chamava esse sentimento pelo nome de tristeza, pelo que me lembro nos dias de hoje de como então entendíamos aquilo. Mas ele também entendeu logo a pergunta e o conceito e foi prontamente respondendo que, sim, que como toda gente humana, índio também tinha depressão. E se estendeu mais na generosa e serena reflexão que fazia ali conosco. Disse que a diferença entre nós e eles não estava no estado depressivo em si, mas em como a comunidade indígena e a nossa lidavam com isso, quando acontecia com alguém próximo. Disse que a gente quando vê alguém nesse estado faz de um tudo para tirá-lo dele, exortando insistentemente a pessoa a “sair dessa”, a “passear e se distrair”, e “olhar como a vida é bela” e, depois, vendo que a pessoa não reage, logo desistimos e nos esquecemos dela, que passa a ser uma espécie de estorvo ou um incômodo irritante. Por outro lado, quando acontece, continuou ele, de alguém na aldeia ficar assim prostrado na rede, sem vontade de nada, a aldeia toda se organiza para para que sempre tenha alguém ao lado e ao alcance dela, em silêncio respeitoso, para que a pessoa não se sinta esquecida e tenha sempre alguém para falar com ela, caso queira conversar. A outra coisa é que sempre tem alguém para lhe levar alimento e água, que são deixados ali, ao pé da rede e ao alcance da pessoa, caso ela se decida em algum momento a comer e/ou beber. Essas cuias com comida e água são então sempre renovadas, aceite ou não a pessoa nesse estado aquele alimento e aquela água que são sempre oferecidos frescos. O rapaz que tinha feito essa pergunta ficou surpreso com o que ouviu, assim como de resto, nós todos, eu acho, e continuou, observando aflito: - Mas e se a pessoa acabar morrendo? Orlando respondeu que nesse caso a aldeia então entende que essa foi a vontade da pessoa e faz seu funeral como faria para qualquer outro tipo de morte que houvesse acontecido na aldeia. Hoje são tantos os sentimentos que eu tenho lembrando essas duas falas de Orlando Villas-Bôas, ali junto com a gente! Penso no pouco que avançamos no entendimento do convívio humano e o da nossa própria existência enquanto espécie nesse lindo planetinha azul, em sua constante peregrinação em torno do Sol. No mais, fico em silêncio agora, porque silencioso é sempre o processo de reflexão e assimilação entre nós, humanos, como certamente somos todos por aqui. Obrigada por mais esta oportunidade de escuta, colegas. Até breve! Um abraço carinhoso a todos vocês. Suely Farah

Marcos Aidar e Suely Farah, durante o primeiro encontro, em 2009.

 
 
 

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